Apresentação do livro de Miguel Godinho



Hoje pelas 18h00 na Biblioteca de Olhão haverá lugar à apresentação do livro Os Nossos Dias de Miguel Godinho. A apresentação estará a cargo do poeta Tiago Nené.

António Ramos Rosa e Polishop de Tiago Nené



António Ramos Rosa lê o livro Polishop, do poeta do algarve Tiago Nené. Polishop é o último livro da colecção de poesia Palavra Ibérica, um dos projectos Linguagem de Cálculo. Um poema aqui.

António Ramos Rosa no novo livro "Prosas Seguidas de Diálogos"


Mais silêncio mais sombra


Imperceptiblement du jeu se produit dans le système, quelque chose bouge, la vie change. Le système n’est pas omnipotent, nous changeons en lui, malgré lui. Et qui sait ce que nous serons demain?

Mikel Dufrenne, Subversion

Sempre falaram alto. Muito alto. Demasiado alto. Todos exemplares e eufónicos, erectos no seu convencimento, na segurança de si, no excesso da personalidade e da expressão. Ouvia-os e não os ouvia, ficava mudo e adiado, admirando-os, invejando-os, anulado definitivamente sem o horizonte de uma palavra. A sua sabedoria era veloz, eléctrica, transbordante. Vozes não eróticas, não silenciosas, não pedestres. Vozes, vozes de ébria sapiência, de chaves e de risos, clamor de evidências. Não os oiço já e continuam sempre, velozmente vitoriosos, incontinentes, insuperáveis. Eles continuarão mesmo depois da minha morte. Mesmo quando a sombra cai, eles continuam o seu discurso fluente e soberano. Onde quer que estejam, falam sempre alto, senhores de si, senhores de tudo. Poderei eu alguma vez dizer uma palavra? O seu discurso anulava-me, eu nunca tinha uma palavra a dizer, a não ser a que ainda seria uma continuação do discurso deles, uma excrescência de mim próprio. Porque eu admirava-os como modelos e queria integrar-me no seu sistema, queria ser como eles, um deles, um senhor também.

Mas que era eu senão a crispada carência do vigor e do rigor da palavra desses senhores? Não, nunca fora capaz de superar a minha rígida mudez quando eu não sabia ainda que o silêncio poderia ser a nascente de outra palavra, uma palavra diferente de todas aquelas vozes que me ofuscavam e me roubavam a mim mesmo. Sim, o silêncio. Que importa que as vozes dos senhores continuem sempre soberanas, sempre fluentes, sempre totalitárias? A grande revolução não será feita pelas palavras deles mas quando o silêncio impregnar as palavras para que nelas transpareça o que está para além das palavras. Sim, nós não sabemos ainda, ainda não começámos sequer. Apenas sabemos que a metamorfose do silêncio mudará o mundo, porque o mundo deixar-se-á ver tal qual ele é, e nós seremos outros. Para que isso possa acontecer, temos de destruir a linguagem, tudo o que na linguagem se interpõe entre nós e o real, para que só a visão nua do silêncio ilumine a realidade. É urgente destruir as palavras para as reconstruir na sua essência inaugural. É urgente inventar a simplicidade extrema de uma palavra viva e nua, a palavra do silêncio. Entramos nas águas vivas da linguagem e do real, unidos e inteiros, no silêncio da palavra e na palavra do silêncio. Não, não se trata de uma profecia. É a nossa própria urgência de viver que nos levará a descobrir a linguagem do silêncio, a única que nos libertará da violência totalitária do sistema. Que importa que os senhores falem e continuem a falar? Sempre alto. Muito alto. Demasiado alto. O silêncio é mais forte, mais puro.

Por enquanto o frenesim domina, estas palavras mesmo. Mas a escrita é a última possibilidade de fuga, a respiração ainda. Porque nós estamos cerrados, ameaçados de esmagamento, de emparedamento e de asfixia. É preciso não perder um só instante, é preciso construir com a sombra e o silêncio. Temos de minar a língua para que ela se abra e nos abra. Não podemos esperar mais. A libertação é possível, talvez nada seja mais simples, mais elementar, mais nu. Deixemos falar os senhores, os que sabem, os que querem dominar. Nós não sabemos mas, na nossa ignorância, sentimos o apelo urgente de um começo, que é o núcleo do silêncio e da palavra. Sim, tudo poderá começar, tudo vai começar. Porque a realidade, na sua verdade primordial, não está perdida, não é um sonho nem uma ilusão nem uma nostalgia. O surgir absoluto da sua presença é a matéria mesma da linguagem salva e da visão liberta. Sim, podemos libertar-nos se soubermos dizer a palavra viva que dá voz ao habitante secreto e primordial do nosso corpo, alguém que é ninguém, ninguém que é alguém, sempre ausente mas vivo nas nossas células, na submersa nascente que inaugura o mundo. É aí, no mais íntimo, que nos apagamos, mas é também aí que o silêncio se incendeia, iluminando a realidade e unindo-nos a ela. É o nascimento de nós mesmos e o nascimento do mundo. Na suprema suavidade desta fusão, somos livres e unos, idênticos e puros. É aí que habita o silêncio primordial e é a partir daí que principia a metamorfose essencial da linguagem e do ser. A pulsação viva da palavra é o fruto desta permeabilidade à silenciosa matriz do corpo. O vocábulo novo, retemperado pela nascente, substituirá o rigor rígido do conceito pela fluidez e fugacidade de uma respiração. Na sua intrínseca transgressão a palavra conduzir-nos-á à nudez viva do silêncio, à transparência do ilimitado.

(...)
António Ramos Rosa 
in Prosas seguidas de Diálogos  
4 Águas

Este belíssimo livro pode ser adquirido aqui.

Pages

Popular Posts