Fernando Esteves Pinto e "O Tempo que Falta"

1962 – Um dia miserável

A bandalheira do costume fazia a decoração da casa.
Eu era a menina na sua nudez de Klimt
exposta nas telas do chão.
Tapete de carne e gemidos,
como uma falsificação de mulher formosa
que sente destruir tudo o que em si já se perdeu.

A infância foi o meu pasto,
e eu segui as instruções que o veneno
dos meus dias organizava em doses puras
de descontracção e esquecimento.

Lembro-me do primeiro beijo e do amargo do bagaço.
Acho que me senti em glória quando me disseram
que a minha beleza nunca dormia,
e que o meu corpo ajudava a suportar a vida.

Agora sei que a mentira sempre cuspiu em cima de mim.

A mentira e o esperma.
Sementes de carícia em troca
da minha própria desgraça.


Fernando Esteves Pinto
in O Tempo que Falta
Temas Originais, 2011

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